Uma pisada em falso. O pé esquerdo ou o direito, quem sabe, reage a uma pedra que se solta da terra, magnetizada pela própria natureza de pedra, a natureza de rolar, endurecida, impávida, mineral, dissolvendo-se em milênios lentos ou em apenas um segundo, a depender do sono do vulcão. Estamos muito perto do precipício e uma única pisada em falso do pé esquerdo ou do direito, quem sabe, faz com que sua proximidade se torne enfim um acidente. Paredes de areia se erguem e, ao contrário do ponderado nas propagandas da agência de turismo, semeiam um risco incalculável. Agora a montanha é uma barreira ao redor, ela é vista de baixo. Rapidamente o topo se torna o fundo, o ponto de vista passa a ser outro: é a montanha que te olha de cima.
Uma perna quebrada, um tornozelo luxado, um dedo deslocado, quem poderia saber os efeitos do tombo nos teus ossos? (procurei saber qual o equivalente na arquitetura moderna à altura de trezentos metros de um vulcão, descobri: um prédio de dez andares: sobreviveste à queda de um prédio de dez andares, passarinha.)
Uma chapa de raio-x te aguardava depois que fosses salva do buraco. E o gesso para consertar as coisas, o leito do hospital, uma máscara de oxigênio para te restituir do ar usurpado pelos gases do vulcão. Teus pulmões inflariam novamente, ágeis, como um par de balões encarnados, prontos para voar no céu das noites juninas.
Veio a noite, o resgate não veio.
Acima o céu, chão de pássaro. O céu ainda é tão lindo, pensas. Porque mesmo na barriga do vulcão ainda te inspiras por lapsos de fascínio, o encantamento pela vida e pela luz, enxame, teia, paraíso, a natureza aterrorizante e bela. O pior pra nós que te observamos de cima, aqui, dessa posição privilegiada, nos ombros do abismo, é a especulação do medo que deves ter sentido.
Fiquei pensando nisso ao longo dos últimos quatro dias em que acreditamos que serias resgatada pelas equipes locais.
O medo, a solidão.
Até agora me dói, o medo, a solidão.
O teu medo, a tua solidão.
Escrevi algo, rasguei a página.
Queria poder criar um mundo do avesso, insistindo na crença de que a literatura, a arte, são alternativas à realidade. Inócuas alternativas: há imagens brutais do teu cadáver no meio das pedras se proliferando nos canais de comunicação. Contra a exploração maquiavélica do teu infortúnio não há discurso possível.
Resta o silêncio a descortinar outras ficções. Aqui insisto na tarefa de te extrair dessas imagens terríveis. O que me resta: te reabitar com o que é bonito. Imaginar tua fala em resposta a nossa imperdoável pena eucarística: eu não tenho medo de nada. Eu não tenho medo do mundo. O mundo é meu. Minha pele é ouro, minha alma é água. O frio não me assusta. Meu nome é Juliana. Eu não tenho medo de nada. Quando eu escorreguei pra dentro do vulcão confirmou-se minha suspeita: um vulcão é sempre um coração. E aqui estou eu, íntima da máquina de fazer existir, pulsando em uníssono com o fogo, magma, rocha, flecha, nata, pai, mãe, irmã. A morte não existe, existe o vulcão, para sempre, o vulcão sobrevive a tudo que de humano nos espanta e frustra: a negligência, o descaso, a inconsequência promovida pela riqueza de uns produzida as custas da miséria de tantos.
O abandono, o vazio da covardia. Eu sou além. Juliana. Além do abandono, além da covardia. Juliana, aquela que jamais foi salva pelos homens, Juliana que agora é um hábito do vento, um sussurro cantando silêncios para o sol nascer.
Juliana agora uma parte da costura do tempo que há de varrer desse triste planeta a invasão do homem, sua ganância podre e ridiculamente casta. Juliana que agora é uma ideia, uma crença, um ato de juízo final: Juliana que agora é um advento, uma data, uma ocorrência. É o dia em que abrirá os olhos crepitantes e haverá de se levantar do fundo do despenhadeiro e escalará suas paredes cintilando uma lava muito quente e vermelha, alcançando sem dificuldades a borda de onde escorregou. Altaneira, seguirá pela trilha da montanha - mesmo sem guias, sem cordas, sem provisões - de volta para casa.
100* andares