A imagem d’O Peso do Pássaro Morto me trespassou, foi por causa dela que eu decidi ler o livro da Aline Bei.
Não conhecia a autora, não procurei saber o tema, fui movida apenas por certo encantamento assombroso que bons títulos podem criar na gente. Não tenho total recordação sobre o enredo do livro, lembro-me vagamente de encontrar uma narrativa do ponto de vista de uma mulher que, desde a infância, sofre pequenas e enormes violências. Num momento final há um cão chamado Vento. A escrita é em versos, o que me fez sentir alguma estranheza e ao mesmo tempo passabilidade lírica em encarar os terrores apresentados a cada página. E só. O livro ficou em mim dessa maneira. É esse o peso do pássaro morto no meu coração. Outros pássaros também ficaram em mim depois e antes desse.
[Não: meu coração não é bem uma gaiola, mas. sim, às vezes aprisiona. ]
Jaques Prévert e os milhares de pássaros afogados no poema do faroleiro… O filme do Hitchcock… Os urubus cruzando o céu de minha infância… A degola das galinhas… Os sonhos com asas, os sonhos nos quais eu voava para fora do bando, solitária, despedindo-me das amálgamas do excesso humano, a busca pela liberdade da sozinhez… A falta do ninho. Também sou meio pássara,
também sei que peso um tanto de morte.
Outro dia estava discutindo a diferença entre moral e ética na sala de aula. Ali recorri a mais uma ave que passou por meu caminho: aquela ave que eu matei.
Contei aos estudantes do dia em que eu estava voltando da feira ao lado de minha namorada e ouvi um canto desesperado ao pé de um pequeno arbusto, era um passarinho muito filhote ainda. O óbvio se estabeleceu: ele caiu do ninho. Vamos achar o ninho, falei. O alto desnudo de copas de árvores, nenhum galho, nenhum vestígio de natureza. Talvez o ninho esteja em alguma janela, pensei, assentado numa reentrância das edificações… Busquei mais e mais. Minha namorada cheia de sacolas de feira, agoniada com o calor, eu nem aí pra ela: queria salvar o pássaro.
Decidi levá-lo comigo, fiz das mãos uma concha e comecei a carregá-lo com muito cuidado, transferindo a minha pobre companheira a responsabilidade de carregar, a partir de agora, as sacolas dela junto as minhas.
Pouco a pouco, o passarinho foi se ajeitando na concha e pareceu entrar em um estado de tranquilidade.
Logo um quarteirão à frente uma senhora pediu para ver o bicho, ela observava de longe nossa tentativa de resgate: que gracinha… eu já tentei tantas vezes levar esses passarinhos pra cuidar em casa, mas todos morrem.
Susto. A senhora deveria ter o quê? Uns oitenta, quase noventa anos? Seu olhar me fustigava com pena. Imediatamente me vi diante do quadro de centenas, talvez milhares, de episódios em que a tal pusera as mãos em concha para resgatar um passarinho. Da infância à velhice, tentativas frustradas de salvamento. Os pássaros de cidade que caem do ninho dificilmente sobrevivem.
Fui tomada por impaciência. Cortei-lhe rispidamente falando que, sim, eu conseguiria. Tentei me munir das mais altas doses de esperança, terminei o diálogo já não enxergando-a mais como senhora, mas bruxa intrometida, querendo que me deixasse em paz, a mim e a o meu passarinho que, tão quieto no centro de minhas duas mãos, realmente parecia ter admitido para si que aquele ser gigante de agora em diante seria algo parecido com uma mãe.
Caminhei as quadras com obstinação. A primeira coisa que fiz ao chegar em casa foi procurar informações na internet sobre salvar pássaros caídos. Uma veterinária surgiu na tela do computador, parecia séria, suas primeiras palavras foram: você não deve jamais levar o pássaro para casa. E continuou: a maioria dos pássaros de cidade que caem dos ninhos e são levados do lugar onde caíram acabam morrendo. Morrem por aspiração de comida, morrem por não reconhecerem a comida como um alimento trazido pela mãe, morrem muitas vezes subitamente mesmo que resistam três, quatro dias… Não acreditem em postagens de pessoas que dizem ter conseguido salvar pássaros em casa, são mentirosos ou tiveram sorte de viver uma exceção. A pior coisa que pode ser feita é retirar o pássaro do lugar onde ele caiu, pois muitas vezes a mãe ainda o procura e existem chances de encontrá-lo pelo canto - uma forma do filhote pedir ajuda.
Uma dimensão espantosa da minha boa fé: a pior coisa que eu podia ter feito, eu fiz. A pior. Levei o pássaro do posto de sua queda e interrompi o fluxo de uma talvez possível salvação. A mãe pássara ainda poderia estar à procura do filhote ali na região da feira. Eu roubei dela a mínima oportunidade de encontrá-lo.
Sim, a bruxa intrometida estava certa. Minha primeira falha trágica foi ignorar sua sabedoria, obtida em experiências igualmente fracassadas.
Olhei o pobre pássaro ainda sob minha tutela. Seus olhinhos pretos, agora mais calmos em face do terror, porém ainda envoltos em sombras, pareciam pressagiar o desencanto. Minha ação interrompera a única chance do pássaro.
Minha namorada tentou ser compreensiva, o silêncio depois da mensagem da veterinária nos deixou desconsertadas.
O pássaro em poucos dias estaria morto, independente do que fizéssemos. Estaria morto em nossa casa, estaria morto também se eu o levasse de volta ao arbusto onde o havia encontrado. O pássaro, meu passarinho, era um condenado - e eu, o seu carrasco.
Eu poderia terminar aqui esse texto. Não há mais para onde ir, não há mais o que contar, a não ser o seco relato do caminho de volta que fiz até o ponto inicial dessa narrativa, o arbusto raquítico onde o passarinho estava. Foi para lá que o levei, tentando me convencer de que ainda haveria tempo, de que a mãe ainda poderia voltar àquele lugar. Não pensei em muitas coisas, apenas me movi dentro dos limites do meu arrependimento.
Claro, é só um pássaro.
Talvez eu não esteja falando de pássaros.
O exemplo não é de todo mal para pensarmos nos sentidos que diferenciam a ética da moral.
O aprendizado dessa história é justamente a interpelação que a ética faz da moral em sentidos muito concretos. Em meu bom mocismo defeituoso de fábrica (como todo bom mocismo, porque é sempre tacanho e eivado pelo egoísmo) eu agi pelo que tomava como um caminho virtuoso. Orgulhosa de meu ato de bondade, fui incapaz de ouvir a voz do conhecimento daquela senhora, fui incapaz de suspeitar que eu, uma escritora sem nenhuma prática nas artes da zootecnia, poderia estar equivocada sobre minhas certezas em relação à sobrevida animal.
A gente precisa assumir que nem sempre sabe o que está fazendo e que agir dentro dos sistemas da bondade humana pode gerar uma grande merda. Uma merda moral que só nos beneficia intimamente. A ética existe justamente para que as ações sejam reguladas de maneira sóbria, coletiva e justa - em contraponto aos nossos ímpetos e valores particulares, subjetivos.
Repito: minha intenção salvacionista foi o decreto de morte do filhote.
Eu poderia não olhar pra isso. Poderia ter ficado com ele em casa, operado em sua reabilitação, fingido acreditar que estaria ganhando peso, bebendo água. Poderia me convencer que, depois de três dias, sua morte terá sido um infortúnio e não parte de uma incontornável estatística. Eu poderia ter entrado com um pedido de adoção para provar a mim mesma que amava o pássaro, que ele era de fato parte de minha vida como um filho, um familiar, eu poderia fazer um testamento em seu benefício, poderia deixar-lhe uma polpuda herança de um dinheiro que sequer tenho. Tudo para me arrancar do chão frio e incômodo da reflexão ética, a reflexão que nos põe diante de nossas falhas e soberba. Pensar cansa, assumir responsabilidades dói.
Mas, como disse, talvez eu não esteja falando de pássaros.
Talvez esteja tentando ainda entender o escopo de atitudes humanas que se parecem com as minhas e que se revelam mesquinhas em sua caridade banguela.